sábado, 10 de novembro de 2007

Brigado com a morte

Idéia de cheiro de rosas e mamãe morta

Brigado com a morte
por Rafael Gloria

Mamãe dormia à tarde, cansada e vermelha, suando por cada pequeno e frágil poro de sua pele branca, apenas ali, se extinguindo, setenta e poucos anos apagando em uma brisa, dessas de Outono, Verão, não sei. Um tipo de vento que, também, soprava em seu inconsciente, embelecido com certa infância pueril de uma pessoa que, de tão idosa, quase alcançava a inocência de uma criança. Nessa ânsia de olhos fechados e sonhos inexpressivos, seu coração vai se acalmando, ficando bem quietinho, parando e adormecendo profundamente, querendo mesmo ir embora, já cansado de tantos dias, horas, minutos. Precisava da pausa, do descanso final. Entrei no quarto, recluso e conduto, marchando reverência para ela, exprimindo dor, consolo e pena no meu rosto de 40 anos médio. De filho médio, advogado médio e pessoa média. Carregava um copo de leite morno, branco e confuso para tentar acometer em seu estômago algum juízo de sentir fome, mas eu duvidava, nem falar ela conseguia, quando ia se arriscar a dizer algo, balbuciava metade dos vocábulos, comendo todas as letras, como se o seu apetite surgisse apenas durante esse momento, alimentando-se de todas as vogais e as diferentes consoantes. Aproximava-me cada vez mais da cama, pisando levemente no carpete para não cometer o erro de fazer muito barulho, já podia observar a colcha rosa que ela mesma fizera, cobrindo todo o seu corpo, apesar do forte calor que o tempo jogava para nós aquela tarde. Apenas mais um indício da última doença que a encontrara. Contava um grande histórico de enfermidades em seu currículo médico, todas as imagináveis inflamações, problemas gástricos, asmáticos, respiratórios. Costumava me dizer que “vivia com a morte em seu encalço”, posso falar, então, que cresci em companhia de duas “pessoas”: mamãe e a morte. Contudo, elas se beneficiaram de uma boa parceria, em nenhum momento pareciam se desgostar, ou brigar uma com a outra, sempre se entendiam de alguma maneira. Cheguei mais perto, e larguei o copo transparente morno na cabeceira, onde ficava também o pequeno abajur azul solitário, que salvava mamãe das noites escuras e amargas que existem. Abaixo do abajur, escondia-se internamente a gaveta, grande e comprida, guardando todos os remédios desse mês – e são muitos. Todos com terminações complicadas, e com um preço tão salgado quanto o oceano que lava a areia branca e pálida das praias. O quarto não estava tão bem iluminado para um dia quente, a luz apagada e o abajur azul aceso denotavam um clima pesado, um ambiente querendo despedir-se e ir embora, como se dissesse que não poderia enganar a morte dessa vez, que o trato quebrou-se, e que ela não teria mais nenhuma chance. Quando eu era criança e mamãe ficava internada por alguns dias no hospital, a imaginava conversando com a morte, negociando alguns anos de vida, lutando para viver e continuar nesse mundo por mais algum tempo, e ao aparecer do nada, em frente aos meus olhos, em casa, jurava que ela havia conseguido, a morte tirara toda sua doença com as mãos mesmo, num passe de mágica.
Quando finalmente fui à procura dos olhos de mamãe - sempre irrequietos -, não consegui encontrar nenhum vestígio de vida, só uma sensação de puro abandono pairava por aquele vácuo branco, difuso e fixo, a única coisa ainda pulsando na cama eram os ácaros que destruíam lentamente o colchão. Ela, enfim, padecera. Subitamente aos 73 anos de idade, apesar de anos a fio duelando com a morte, ela não possuía a característica mais importante para subvertê-la: a eternidade. Permaneci em estado de choque por alguns segundos, remoendo-me internamente, gesticulando comigo palavras chatas baixas, difamando a morte, berrando com ela. Eu a tinha como doce amiga, uma companheira, parte de mim acreditava piamente que ela era nossa aliada, que estava a favor da minha mãe nessa longa jornada que é a vida. Éramos uma família. Larguei tudo e saí do quarto, uma forte dor no peito me acertara, minha cabeça desvencilhava-se em fragmentos que eu não conseguiria mais juntar, fechei a porta num último impulso e me sentei de costas para ela, no chão mesmo, ofegante e chorando baixinho. Durante esse momento, os fragmentos se espalharam e caíram no chão, como se eu pudesse acessá-los um por um. Lembrei-me dos dias em que esperava mamãe em casa, depois que ela voltava do hospital, das rosas na minha mão que eu lhe entregava, da festa de retorno, da boa vinda, do sorriso e do abraço que nunca mais sentiria. Lembrei de suas palavras, conselhos, ensinamentos, vontades obscuras nunca realizadas, frases repetidamente citadas, na qual uma delas, especificamente, marcou-me profundamente, ela costumava dizer que “a morte, mais que um rito de passagem, era um ensaio de como vivemos”. Isso entrou na minha cabeça e não saiu mais. “um ensaio de como vivemos”, “um ensaio de como vivemos”, o que ela queria dizer com isso? Essas palavras pulsaram durante um bom tempo na minha mente, fluindo sozinhas, conduziram o meu canal de pensamento a uma idéia absurda. Eu deveria oferecer a minha mãe uma morte diferente, ou melhor, uma passagem digna, um velório totalmente lúcido. Assim eu poderia resolver diretamente as coisas com a morte. Então levantei, imediatamente, larguei meus pensamentos e a indecisão no canto e parti para a ação, decidi fazer a peça na sala mesmo, o lugar mais amplo e arejado, no qual eu poderia trabalhar melhor o ambiente.
Procurei velas de todos os tipos e as distribui pela sala, as luzes munidas de fogo puro transmitiam uma claridade diferente para o lugar. Em volta da mesa – onde ficaria o corpo – espalhei as mais belas pétalas de rosas que mamãe cultivava no jardim de casa. Foi com muita dificuldade que abri a porta do quarto, deslizando a mão pela maçaneta, relutando inúmeras vezes, e por fim, vencendo os meus próprios receios, cultivei certa coragem momentânea e quebrei aquela imensidão de silêncio com o ranger curvo da porta. E ela arredou numa rapidez, a qual eu não esperava, era como se outra pessoa, também, tivesse me ajudado a abri-la. Entrei sorrateiramente e liguei o interruptor do quarto, espalhando luz pelo cenário de paredes marrons claras. Caminhei até mamãe, convicto de que agiria da forma certa e de que tudo estava encaminhando-se para um final conciliador. Chegando a cama, não pude impedir algumas gotas que insistiam em cair dos olhos, mas elas rapidamente sumiram - fato que creditei a extrema confiança nas minhas ações -, estava a conduzindo para uma boa passagem, fazendo do seu velório uma moldura especial para o fim de sua vida. Segurei a firmemente, ela não parecia tão pesada, quanto eu achava, ou eu estaria sendo mais uma vez auxiliado por alguma força especial? Não sei. Não pensara em nada naquele momento, só queria velar o sono eterno e pomposo de minha mamãe. Em alguns passos já me encontrava na sala, moldando-a a mesa, e espalhando as pétalas de rosas em seu corpo e no chão e por toda sala, o cheiro da vela se confundia agora com os odores que exilavam calmamente de cada pedaço de rosa que ali se encontrava. Então desliguei a luz e segurei a mão de mamãe, apenas fiquei ali, não sei por quantas horas, apertando firme aquela pele fria e tristonha, que perdera a batalha contra a morte. Senti durante todo o tempo que permaneci ali, que o outro membro da família estava ao meu lado, dando as condolências, reverenciando minha mãe, depositando rosas invisíveis, falando palavras que eu não ouvira, e que no meu mundo eram traduzidas apenas como frios na pele. A morte estava ao meu lado. Tinha maldita certeza disso. Invisível, mas vendo tudo ao redor. Eu não poderia tocá-la, mas poderia perceber sua presença. Então, num impulso horrível, minha voz despertara num grito tétrico e despótico, eu falei que quando fosse a minha vez de se ruir nesse mundo, eu queria que fosse rápido, sem negociações, sem anos pré-datados. Sumir simplesmente, apagar na primeira doença que me atravessasse. Não queria cometer o erro de tê-la como companheira, não queria fraquejar como minha mãe fizera. Num súbito, todas as velas apagaram, a sala escureceu, de um preto tão negro que eu me perguntava se cor não estava me consumindo. Resolvi então, acender o interruptor e a luz voltara normalmente, mamãe ainda estava lá na mesma posição. As rosas tapavam o seu corpo e o cheiro delas parecia só mais forte. E eu ainda estava vivo, mas brigado com a morte.

2 comentários:

daeleon disse...

Gosto do teu jeito de escrever, parece que as coisas criam vida e consegues passar a angústia do personagem.Não sei porque ,mas fiquei me lembrando do livro " A asa esquerda do anjo" da lya luft,impressão talvez.
Mas depois em que aparece a morte da mãe ali,perdi um pouco interesse no texto.De repente coloca ele preparando o velorio antes e só depois mostra ela morta,tipo,o texto cria uma expectativa de ver a mãe morta, deixa isso mais pro final.
Fora isso,acho que tem muitas vírgulas também.
Mas curti a idéia de "estar brigado com a morte" e da morte ser meio que um personagem .
yeah


rogério

juprediger disse...

"...balbuciava metade dos vocábulos, comendo todas as letras, como se o seu apetite surgisse apenas durante esse momento, alimentando-se de todas as vogais e as diferentes consoantes." >> amei! ^^
curti também o anti-clímax das coisas estarem absolutamente normais depois da luz ser acesa :D