quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Feliz aniversário


Esta é primeira crônica que escrevi. Não pensei que fosse tão divertido e fácil assim. Não revisei o texto antes de postar,por favor ,critiquem ^^
abraço gurizada


Rogério Luis Beninca
Crônica

Feliz aniversário

Inferno astral ,segundo a crença popular nos astros é o período dos trinta dias que antecedem a data de seu aniversário. Nessa época, para os que acreditam, fica-se mais sensível e tudo parece dar errado. Parece que a coisa não vai.
Para os que acreditam. Não que eu seja um desses seres crédulos que saem por aí acreditando em tudo que é Santo Expedito que se ganha no centro. Mas sim, acho que é válido se ter em que acreditar. Jesus cristo, budismo, taoísmo, orixás, princesa Daiana, qualquer coisa está valendo, contanto que reconforte. No meu caso tentei usar a lógica como justificativa, observando como as coisas se desenrolam no meu mês de inferno astral . A data em que resolvi nascer : reveillon.
Veja se não parece sensato. Em dezembro todo mundo corre. É correria pra tudo que é lugar. Se você vai no banco a fila é mais infinita do que o normal. Com a função do décimo terceiro salário todos resolvem pôr as contas em dia. Todo mundo vai no banco, como se o que o fosse acabar não fosse o ano, e sim o mundo. Como se precisasse estar com as contas em dia para o juízo final.
Para piorar: o mês é mais curto, tem dois feriados. O natal vale por dois: se comemora um dia antes e no próprio dia. E o reveillon em si, cujo feriado é no dia seguinte, no ano seguinte, mas nada funciona no dia. Exceto supermercados, também com filas infinitas e com o adicional de não se ter lugar para se estacionar.
E daí tem as compras de natal. E a lista gigante das pessoas que não se pode esquecer de dar presentes. Para cada um da lista, um presente diferente, de uma loja cheia diferente, em uma fila gigante diferente. Pior se deixar para a última hora, a fila vai ser mais gigante, beirando o infinito. Mas é tão difícil não deixar para a última hora, visto que o tempo passa mais rápido em dezembro, quando se vê, acabou. A grana para os presentes(décimo) só sai lá pelo dia 20 ( ou seja, em cima da hora). Sempre acaba ficando alguém da lista de fora .Inferno.
Dizem que o inferno (pelo menos o mais famoso deles) arde em chamas. Bom, sem querer exagerar, mas aqui do hemisfério sul em dezembro a temperatura chega bem perto disso. E piora a cada ano, cada vez mais quente. Para um amante do inverno, do frio, da serra gaúcha é no mínimo uma piada de mal gosto da mãe fazer aniversário no verão. E sabe o que se encontra na estrada quando se tenta ir à praia no final de semana em dezembro? Engarrafamento, ou seja, outra fila.
Completando o quadro, quem faz aniversário no reveillon faz só meio aniversário, às vezes nem isso. Parentes e amigos estão muito mais preocupados nas cidras e na ceia do que no seu bolo de aniversário. Dificilmente alguém lembra da sua existência após o almoço, o negócio é a concentração para o ritual de “vai te embora ano”. Usando a lógica, ou a mística, é ou não é um mês infernal ? Sinceramente, prefiro deixar a mística de lado e acreditar que todos, no mundo inteiro, abrem champanhes e soltam fogos para comemorar meu aniversário. Feliz ano novo .

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

A velha, Deus e o ferro de passar roupa.

Conto - Athos Aguiar

A velha, Deus e o ferro de passar roupa.

Ninguém sabe dizer ao certo quando foi que aconteceu, mas conta a história que foi num acidente de carro que Dona Francisca perdeu o marido e o filho. A casa grande, com muitos quartos à espera de outros rebentos ficou vazia com sua única hóspede, que sempre a mantinha fechada, como que para mantê-la intacta. Não demorou muito para que a casa estivesse cheia de gatos, e a velha Chica andava sempre com algum no colo. Passeava pela vizinhança e ficava horas parada em frente às casas, como que a imaginar o que se passava lá dentro. Com seus cabelos desarrumados e suas roupas antigas e surradas, não falava - quando não cochichava com seus gatos, esbravejava coisas que ninguém entendia, e eu sempre saía correndo assustada quando ela o fazia.
Certo dia, por causa de uma denúncia, levaram todos os bichanos da velha Chica. Ela gritava, e dessa vez eu tinha certeza que não era nada bom, mas os homens continuava a retirar um por um da casa. Minha mãe balançava a cabeça olhando para a velha e em tom de explicação me dizia:
- Deus sabe o que faz, minha filha.
Às vezes eu preferia não entender as frases feitas da minha mãe.
Passei algum tempo sem ver a velha Chica, cheguei a ficar preocupada com ela trancada tanto tempo dentro daquela casa. Mas não demorou muito para ela voltar a dar seus passeios por aí, o estranho era que agora ela andava com um ferro de passar roupa amarrado, como se fosse um cachorro. De vez em quando pegava-o no colo e dizia coisas. O ferro era seu grande companheiro, nunca reclamava de nada, nem mesmo quando ele trancava em alguma pedra no chão e ela puxava com força desferindo seus peculiares xingamentos.
Alguns meninos costumavam andar atrás da velha, incomodando-a, imitavam seus gritos e a empurravam. Até que um dia pegaram o ferro de passar roupa e saíram correndo com ele. Ela não foi atrás e nem gritou mais, ficou parada, estática, olhando para os meninos que sumiam ao longe. E ali ficou. As horas passaram, e a velha Chica, com as mãos no rosto, caminhou lentamente de volta para casa. Ela nunca mais foi a mesma, não passeava, não xingava e não tinha ninguém nem nada para confidenciar seus pensamentos.
Um dia, voltei da aula mais cedo, e qual não foi minha surpresa quando vi minha mãe em frente a casa de velha Chica. Foi até a porta, abaixou-se e largou alguma coisa. Quando se afastou, pude ver que era um ferro de passar roupa novinho. Ela saiu andando rapidamente, tentei me esconder, mas não tive tempo. Surpresa com minha presença, minha mãe apenas disse:
- Deus escreve certo por linhas tortas, minha filha.
Pegou minha mão, e fomos para casa.

Terça-feira

Crônica - Athos Aguiar

Terça-feira

Acorda. Os olhos não se abrem com aquela rotineira vontade de voltarem a fechar. Afinal, é terça-feira, o melhor dia da semana!
Olha a mulher ao lado, já não é bonita, nem feia, apenas uma pessoa que parece ter sido colocada na sua cama anos atrás - muitas vezes volta à noite e encontra a estátua ali, na mesma posição, tão próxima fisicamente, mas tão distante da sua vida.
Que seja, é o grande dia! Levanta sem nem sentir a velha dor nas costas. Se olha no espelho e, como só faz uma vez na semana, repara em si mesmo, se acha estranho. Demora mais que o normal se arrumando, em busca do resultado menos pior. A melhor roupa, o melhor perfume, o sapato do casamento. “Uma mancha na camisa!” - percebe - “Droga!”
Sente vontade de acordar a estátua, mas não tem tempo para isso. Apressa-se em se trocar. Não pode se atrasar, não hoje! O coração começa a bater mais forte. O gel de cabelo, há seis dias esquecido, volta a ser usado.
Não tem café, mas não se importa, o sono de sempre não existe nas terças. Melhor assim, vai para a frente do espelho novamente – retoques finais na obra-de-arte abstrata.
Chegou a hora. É mais um dia de calor insuportável, mas se a temperatura fosse negativa nem perceberia, o suor é frio e as mãos tremem, o corpo todo treme. Sai no corredor e olha as inúmeras portas que mantêm as vidas melhores seguras, e longe da dele.
Parado, em silêncio, espera. Minutos parecem horas.
Barulho de chave! Só pode ser! Não se engana, pois já conhece de cor.
Lá está. Caminham em direção ao elevador, ponto de encontro que o acaso há tempo criou, e pelo qual a coincidência já não se responsabiliza.
Juntos chamam o elevador, as mãos se tocam - um choque percorre a espinha como um arrepio e, pela primeira vez no dia, percebe a alta temperatura.
“Bom dia”
Ele não responde, não consegue, apenas balança a cabeça afirmativamente.
“Calorão, né?”
Pensa em muitas respostas:
“É.”
O maldito elevador chega, logo agora que estavam conversando! Por sorte, o vizinho continua:
“Ter aula nesses dias é um horror! Imagina quem tem que sair assim, super arrumado... bah, o senhor deve ter um empregão!”
Ele apenas ri, não sabe se de nervoso ou de feliz pelo outro tê-lo notado.
O elevador chega ao térreo, cada um sai para seu lado.
Ele não consegue parar de sorrir. É maravilhosa a sensação de cumplicidade no crime muito planejado e jamais cometido – a ilusão cheia de veracidade.
As longas horas que passa procurando emprego são muitos menos cansativas nas terças-feiras, com certeza!


segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Decisão


Essa é a mesma história que o Ariel postou aí embaixo, sob outro ponto de vista. Ainda triângulos amorosos .
(dão boas histórias esses chifres,hãn =) )

Decisão

Eu tinha que acabar com aquilo tudo. Não agüentava mais. Não conseguia mais suportar tanta mentira, tanto segredo. Decidi que hoje seria minha última noite com o Cris. Decidi que hoje lhe contaria toda a verdade, o ponto final seria hoje à noite.
Ele estava atrasado. Invariavelmente era pontual, mas hoje estava atrasado. Finalmente chegara, parecia um pouco nervoso.
“Oi Giulia”
“Oi...porque a demora? Aconteceu alguma coisa?”
“Nada não. Parei para te comprar um chocolate.”
Ele havia me comprado chocolate no dia em que ficamos pela primeira vez. Era exatamente a marca que eu gostava. Ele sempre me comprava chocolate quando queria me comprar depois de alguma briga, ou sempre que tinha aprontado alguma coisa. Mas sua expressão estava diferente. Eu sei que tinha acontecido alguma coisa.
“Entra, vamos pedir uma pizza para jantar”
Já era tarde. Enquanto não chegava nossa entrega resolvi abrir um vinho para relaxar e curtir a última noite. Isso me daria mais coragem para acabar com tudo também. Não queria perdê-lo, não queria não ter sua companhia, não queria ficar sem ouvir suas piadas sem graça, não queria não poder mais dormir de conchinha no inverno...Mas também não conseguia enganá-lo. Queria poder ter tudo, mas tinha certeza que ele jamais entenderia. Não queria magoá-lo, e se ele descobrisse , nunca iria me perdoar. Por isso decidira acabar com tudo. Precisava de coragem.
Mais algumas taças, nada da pizza. Liguei para a pizzaria e cancelei a entrega. Ambos havíamos perdido a fome e estávamos meio altinhos já. Mas reparei que Cris não havia relaxado.
“Giulia....tenho que te falar uma coisa, mas não tenho coragem. Por isso escrevi tudo nessa carta”
“Também tenho uma coisa pra te dizer.”
Nisso, alguém ansiosamente bate à porta.
“Espera um pouquinho , deixa que eu atendo a porta”
Sento no sofá, respiro fundo e tento criar coragem, me recompor. Olho para trás e para minha surpresa, era Claudia. Tremendo de nervosa.
“Que bom que os dois estão aqui. Eu queria falar com vocês!”
“Claro,senta,senta. Quer um café?”
“Não,não...é um assunto rápido”
“Temos chocolate, não quer um pedaço?”
“Realmente não precisa. Só tenho que falar isso bem rápido.”
Não tinha coragem de encarar Claudia. Justamente nesse momento ela me aparece aqui. Agora que eu ia colocar as coisas no lugar. Cris procura insistentemente algo no bolso e não encontra. Havia perdido a carta que me daria?
Cris olhava para o chão. Seu pé balançava freneticamente. Claudia finalmente diz:
“Eu não aguento mais segredos!”
Olho para o Cris, tenho impulso de falar, inventar qualquer coisa na hora. Ele também tem a mesma reação do que eu. Claudia nos interrompe.
“Está tudo acabado. Eu tinha um caso com os dois. Pois bem, está acabado!”
Perplexa, olho para o Cris, perplexo...
Claudia levanta e vai embora nos deixando a sós. Confusa, agora muitas coisas faziam sentido, tudo se encaixava perfeitamente. Silêncio na sala. Ia ser uma longa noite, teríamos muito o que conversar.

semtítulo.doc

eu tenho esse problema, nunca sei que título devo pôr...
e esse texto tá ruinzinho, coitado, mas o Rogério reescreveu
e eu ainda não li, quero só ver o q ele fez
tinha que mudar o narrador... bom, aí vai a minha versao...



sem título

Eu tinha que acabar com tudo aquilo. Não aguentava mais. Não podia suportar tanta mentira, tanto segredo, tanta falsidade. Decidi ir para lá imediatamente. Aquilo ia acabar, e era naquela noite.

Saí de casa correndo, e fui a pé, para ter mais tempo de pensar em como iria dizer tudo o que eu queria. Não devia ter deixado as coisas irem tão longe. Sim, era a coisa certa a fazer, parar tudo aquilo, por um fim definitivo. Eu me sentiria melhor, com sorte, uma vez que tudo estivesse esclarecido. Não precisaria mais mentir, isso aliviaria toda a tensão entre nós ultimamente. Com certeza, era a melhor coisa a se fazer.

Chegando à porta, toquei a campainha. Insistentemente, pois estava sem paciência. Por que demoravam a atender? Estariam jantando? Não havia notado que já era tarde.

A porta abriu. Lucas estava parado na minha frente e parecia bem surpreso. Era incomum eu aparecer de surpresa na casa deles, principalmente quando os dois estavam em casa. Há tempos eu vinha falando que não queria continuar com aquilo. Acho que ele percebeu o que eu pretendia fazer. Parecia nervoso. Entrei e vi Giulia sentada na sala, vendo TV. Pelo menos eu não atrapalhava a janta. Ela me olhava, também surpresa, e mais nervosa ainda que Lucas. Certamente estavam com medo do que eu fosse fazer, embora não soubessem com certeza o que eu queria. Nem o que eu diria.

Chamaram-me para a sala. Tentaram manter uma conversa normal, como se nada tivesse acontecido. Mas eu não queria me enrolar, podia perder a coragem. “Precisava falar com vocês sobre algo.” eu disse. Ofereceram-me café. Não quis. Chá. Bolo. Chocolate. Não, não queria nada. Eu queria era acabar logo com aquilo. “É um assunto rápido.” Eles estavam tentando adiar, sabiam, cada um concluía, o que eu queria falar. Mas eles não imaginavam. Lucas levantou, mas eu fiz com que se sentasse. “Eu já queria há tempos falar com vocês sobre isso.”

Giulia ficou vermelha de repente, olhou do canto do olho para ver se Lucas percebera. Não, não notou, estava muito ocupado olhando para o chão, onde seu pé se mexia freneticamente. Não notavam um o nervosismo do outro. “É um assunto chato.” Espera mais um pouco, deixe para amanhã, fale com eles em separado. Mas não, eu não podia. Tinha que ser agora. “Melhor falar logo.” Giulia suava frio. Cris procurava algo inexistente em seu bolso. Olhei para o chão, para ver se realmente tinha algo de interessante que eles observavam, mas não.

“Hoje, eu pretendo ser cem por cento honesto com vocês.” Ambos me olham, suplicantes, nervosos demais para perceber um ao outro. Novamente, tentaram me interromper. Não deixei. “Parem. Preciso falar e é hoje.” Ficaram paralisados. “Nossa amizade é muito importante para mim para eu continuar arriscando tudo.” Olharam-me, perplexos.

“Não vou pôr mais nada em risco. Eu tive um caso com ambos, mas a partir de hoje, está acabado.”

Vi a surpresa na reação deles. Sua expressão era estranha, nada que eu pudesse explicar. Confusos, eles digeriam a informação, viam como muitas coisas faziam mais sentido à luz desse novo fato. Ainda não tinham olhado um para o outro, não tinham falado nada, quando eu fui embora. Imaginei que eles ainda teriam muito para conversar, e eu não iria mais atrapalhar...

sábado, 10 de novembro de 2007

Nos olhos de quem vê

Nos olhos de quem vê
por Julia Prediger


Ele estava esticado sobre o colchão, os olhos fixos no ventilador de teto, o suor desenhando o contorno do seu corpo estático. Pelas venezianas o farol dos carros criava desenhos passageiros na parede nua. A freqüência dos desenhos diminuía e denunciava outra madrugada lenta nas ruas. Ele não conseguia dormir. O sangue corria rápido e, realizados todos os rituais, ele ainda era dominado pelo medo sufocante de ter deixado para trás algum vestígio.

O sol já alaranjava o apartamento quando Ramiro trocou finalmente de posição e dirigiu-se ao chuveiro frio e a mais um dia de trabalho. Ele extraía dinheiro de quem já não possuía o suficiente para comprar um carro ao invés de enlatar-se nos ônibus decadentes da cidade.

Sua rotina era a mesma há muito tempo e apenas três vezes fora quebrada.

A primeira havia acontecido há dois anos, mas os detalhes ainda eram vívidos: o mendigo que o atormentava por comida, bêbado, suscitando qualquer sentimento estranho que lentamente o cegava e possuía até que ele decidisse drená-lo de alguma forma. A última gota de suor daquela agonia cruzou-lhe a têmpora em compasso com o último espasmo de horror na cara do mendigo. Ramiro, quando voltou a si, estava jogado no colchão, refazendo mentalmente seus passos e tentando convencer-se de que não havia meios de ser descoberto. A segunda vez havia sido diferente. Os olhos claros da adolescente contaram-lhe sonhos antes de se apagarem. E era a diferença da vida - mesmo com a semelhança da morte - que ele conseguia vislumbrar naqueles segundos derradeiros. Como se de alguma forma ele virasse um vigário no aguardo da confissão final.

A terceira vez fora a noite anterior. Ele tinha visitado seu pai de criação, um marceneiro (aposentado por invalidez) que o criou depois que seus pais faleceram. Embora convivesse com o velho desde os dez anos eles não conversavam nada além do trivial. O tempo mormacento, o movimento nos ônibus que aumentara, a segunda divisão do futebol. Naquele dia, a mesma coisa. O diálogo seguia viscoso, o calor deixava o velho lento e Ramiro de mau humor. A tarde foi ficando para trás, o sol se punha detrás dos prédios e o barracão do marceneiro tornava-se um teatro de sombras. Se alguém se desse o trabalho de acompanhar a peça daquela noite - em apresentação única! - teria visto o fim trágico. Entre um grunhido e outro, um formigamento subia da altura das costelas para os ombros de Ramiro e ele foi perdendo o controle para si mesmo - para a pulsação que o movia de tempos em tempos. Ele juntou as duas mãos, com o pescoço do velho entre elas e foi vendo verter das pupilas a surpresa de quem confia, mas se vê errado.

Na outra manhã, ele recebia o dinheiro e via as pernas passarem pela roleta com os olhos cansados e fundos. Outro dia e a cena era a mesma, mas o cansaço que era da noite inteira em claro tornou-se da vida. E ele acordava, comia, fazia a barba, cobrava, tornava a comer e dormia. O sangue já não corria, era turista sem pressa dentro de Ramiro, que vivia porque assim já estava fazendo há tanto tempo que não lhe parecia sensato sentar e morrer de repente.

O tédio engoliu quatro meses e numa manhã, similar a todas as outras, depois de acordar e comer, Ramiro foi barbear-se diante do espelho. Por um acaso ou não, escorregou-lhe a lâmina entre os dedos e um fio encarnado surgiu em sua face. Com a dor inesperada, seus olhos abriram de chofre e ele se viu no espelho, torso nu, vulnerável. Os momentos seguintes foram rápidos, na tentativa irônica de não parecer previsível. Ele deslizou a navalha de um lado a outro da garganta e fixou no espelho seu próprio olhar: híbrido perfeito de sentimentos que ele nunca tivera o prazer de observar antes. Não teve sequer tempo de lamentar por ser encontrado com parte do rosto barbeada e a outra não.

Brigado com a morte

Idéia de cheiro de rosas e mamãe morta

Brigado com a morte
por Rafael Gloria

Mamãe dormia à tarde, cansada e vermelha, suando por cada pequeno e frágil poro de sua pele branca, apenas ali, se extinguindo, setenta e poucos anos apagando em uma brisa, dessas de Outono, Verão, não sei. Um tipo de vento que, também, soprava em seu inconsciente, embelecido com certa infância pueril de uma pessoa que, de tão idosa, quase alcançava a inocência de uma criança. Nessa ânsia de olhos fechados e sonhos inexpressivos, seu coração vai se acalmando, ficando bem quietinho, parando e adormecendo profundamente, querendo mesmo ir embora, já cansado de tantos dias, horas, minutos. Precisava da pausa, do descanso final. Entrei no quarto, recluso e conduto, marchando reverência para ela, exprimindo dor, consolo e pena no meu rosto de 40 anos médio. De filho médio, advogado médio e pessoa média. Carregava um copo de leite morno, branco e confuso para tentar acometer em seu estômago algum juízo de sentir fome, mas eu duvidava, nem falar ela conseguia, quando ia se arriscar a dizer algo, balbuciava metade dos vocábulos, comendo todas as letras, como se o seu apetite surgisse apenas durante esse momento, alimentando-se de todas as vogais e as diferentes consoantes. Aproximava-me cada vez mais da cama, pisando levemente no carpete para não cometer o erro de fazer muito barulho, já podia observar a colcha rosa que ela mesma fizera, cobrindo todo o seu corpo, apesar do forte calor que o tempo jogava para nós aquela tarde. Apenas mais um indício da última doença que a encontrara. Contava um grande histórico de enfermidades em seu currículo médico, todas as imagináveis inflamações, problemas gástricos, asmáticos, respiratórios. Costumava me dizer que “vivia com a morte em seu encalço”, posso falar, então, que cresci em companhia de duas “pessoas”: mamãe e a morte. Contudo, elas se beneficiaram de uma boa parceria, em nenhum momento pareciam se desgostar, ou brigar uma com a outra, sempre se entendiam de alguma maneira. Cheguei mais perto, e larguei o copo transparente morno na cabeceira, onde ficava também o pequeno abajur azul solitário, que salvava mamãe das noites escuras e amargas que existem. Abaixo do abajur, escondia-se internamente a gaveta, grande e comprida, guardando todos os remédios desse mês – e são muitos. Todos com terminações complicadas, e com um preço tão salgado quanto o oceano que lava a areia branca e pálida das praias. O quarto não estava tão bem iluminado para um dia quente, a luz apagada e o abajur azul aceso denotavam um clima pesado, um ambiente querendo despedir-se e ir embora, como se dissesse que não poderia enganar a morte dessa vez, que o trato quebrou-se, e que ela não teria mais nenhuma chance. Quando eu era criança e mamãe ficava internada por alguns dias no hospital, a imaginava conversando com a morte, negociando alguns anos de vida, lutando para viver e continuar nesse mundo por mais algum tempo, e ao aparecer do nada, em frente aos meus olhos, em casa, jurava que ela havia conseguido, a morte tirara toda sua doença com as mãos mesmo, num passe de mágica.
Quando finalmente fui à procura dos olhos de mamãe - sempre irrequietos -, não consegui encontrar nenhum vestígio de vida, só uma sensação de puro abandono pairava por aquele vácuo branco, difuso e fixo, a única coisa ainda pulsando na cama eram os ácaros que destruíam lentamente o colchão. Ela, enfim, padecera. Subitamente aos 73 anos de idade, apesar de anos a fio duelando com a morte, ela não possuía a característica mais importante para subvertê-la: a eternidade. Permaneci em estado de choque por alguns segundos, remoendo-me internamente, gesticulando comigo palavras chatas baixas, difamando a morte, berrando com ela. Eu a tinha como doce amiga, uma companheira, parte de mim acreditava piamente que ela era nossa aliada, que estava a favor da minha mãe nessa longa jornada que é a vida. Éramos uma família. Larguei tudo e saí do quarto, uma forte dor no peito me acertara, minha cabeça desvencilhava-se em fragmentos que eu não conseguiria mais juntar, fechei a porta num último impulso e me sentei de costas para ela, no chão mesmo, ofegante e chorando baixinho. Durante esse momento, os fragmentos se espalharam e caíram no chão, como se eu pudesse acessá-los um por um. Lembrei-me dos dias em que esperava mamãe em casa, depois que ela voltava do hospital, das rosas na minha mão que eu lhe entregava, da festa de retorno, da boa vinda, do sorriso e do abraço que nunca mais sentiria. Lembrei de suas palavras, conselhos, ensinamentos, vontades obscuras nunca realizadas, frases repetidamente citadas, na qual uma delas, especificamente, marcou-me profundamente, ela costumava dizer que “a morte, mais que um rito de passagem, era um ensaio de como vivemos”. Isso entrou na minha cabeça e não saiu mais. “um ensaio de como vivemos”, “um ensaio de como vivemos”, o que ela queria dizer com isso? Essas palavras pulsaram durante um bom tempo na minha mente, fluindo sozinhas, conduziram o meu canal de pensamento a uma idéia absurda. Eu deveria oferecer a minha mãe uma morte diferente, ou melhor, uma passagem digna, um velório totalmente lúcido. Assim eu poderia resolver diretamente as coisas com a morte. Então levantei, imediatamente, larguei meus pensamentos e a indecisão no canto e parti para a ação, decidi fazer a peça na sala mesmo, o lugar mais amplo e arejado, no qual eu poderia trabalhar melhor o ambiente.
Procurei velas de todos os tipos e as distribui pela sala, as luzes munidas de fogo puro transmitiam uma claridade diferente para o lugar. Em volta da mesa – onde ficaria o corpo – espalhei as mais belas pétalas de rosas que mamãe cultivava no jardim de casa. Foi com muita dificuldade que abri a porta do quarto, deslizando a mão pela maçaneta, relutando inúmeras vezes, e por fim, vencendo os meus próprios receios, cultivei certa coragem momentânea e quebrei aquela imensidão de silêncio com o ranger curvo da porta. E ela arredou numa rapidez, a qual eu não esperava, era como se outra pessoa, também, tivesse me ajudado a abri-la. Entrei sorrateiramente e liguei o interruptor do quarto, espalhando luz pelo cenário de paredes marrons claras. Caminhei até mamãe, convicto de que agiria da forma certa e de que tudo estava encaminhando-se para um final conciliador. Chegando a cama, não pude impedir algumas gotas que insistiam em cair dos olhos, mas elas rapidamente sumiram - fato que creditei a extrema confiança nas minhas ações -, estava a conduzindo para uma boa passagem, fazendo do seu velório uma moldura especial para o fim de sua vida. Segurei a firmemente, ela não parecia tão pesada, quanto eu achava, ou eu estaria sendo mais uma vez auxiliado por alguma força especial? Não sei. Não pensara em nada naquele momento, só queria velar o sono eterno e pomposo de minha mamãe. Em alguns passos já me encontrava na sala, moldando-a a mesa, e espalhando as pétalas de rosas em seu corpo e no chão e por toda sala, o cheiro da vela se confundia agora com os odores que exilavam calmamente de cada pedaço de rosa que ali se encontrava. Então desliguei a luz e segurei a mão de mamãe, apenas fiquei ali, não sei por quantas horas, apertando firme aquela pele fria e tristonha, que perdera a batalha contra a morte. Senti durante todo o tempo que permaneci ali, que o outro membro da família estava ao meu lado, dando as condolências, reverenciando minha mãe, depositando rosas invisíveis, falando palavras que eu não ouvira, e que no meu mundo eram traduzidas apenas como frios na pele. A morte estava ao meu lado. Tinha maldita certeza disso. Invisível, mas vendo tudo ao redor. Eu não poderia tocá-la, mas poderia perceber sua presença. Então, num impulso horrível, minha voz despertara num grito tétrico e despótico, eu falei que quando fosse a minha vez de se ruir nesse mundo, eu queria que fosse rápido, sem negociações, sem anos pré-datados. Sumir simplesmente, apagar na primeira doença que me atravessasse. Não queria cometer o erro de tê-la como companheira, não queria fraquejar como minha mãe fizera. Num súbito, todas as velas apagaram, a sala escureceu, de um preto tão negro que eu me perguntava se cor não estava me consumindo. Resolvi então, acender o interruptor e a luz voltara normalmente, mamãe ainda estava lá na mesma posição. As rosas tapavam o seu corpo e o cheiro delas parecia só mais forte. E eu ainda estava vivo, mas brigado com a morte.